Idoso: eu cuido, você cuida, nós cuidamos.

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Foto/© Hongqizhang.

Nem sempre o verbo cuidar é conjugado na íntegra
e essa é uma questão que a gramática não resolve.

Por Silvana Bezerra

A população acima de 60 anos representa hoje 13,5% dos brasileiros e a expectativa é a de que, em duas décadas e meia, essa fatia salte para 24,5%. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, esse é o limite para um indivíduo ser considerado idoso.

Idosa? A professora Selma Bezerra, aos 61 anos, é taxativa quando diz: “essa idade não cabe em mim”. Diariamente, ela se divide entre aulas (em duas escolas), serviços domésticos e atenção à família. Quando pode, joga bola com os sobrinhos.

Usando uma expressão cunhada pelo especialista em envelhecimento, Alexandre Kalache, a professora é considera “gerontolescente”. Período muito mais longo que a adolescência, contado a partir dos 55-60 anos e que pode durar 25-30 anos.

É um novo tempo de rebeldia. Segundo Kalache, nessa fase, o indivíduo já não quer o que queria antes, tem mais tempo para experimentar e virar a mesa. O médico se refere aos que não têm mais filhos pequenos, não têm que pagar universidade e não estão preocupados em fazer carreira. É uma turma que usa redes sociais, não se vitimiza com as marcas do tempo, aproveita a força e a sabedoria acumulada para investir em projetos pessoais e em qualidade de vida. “Chega um momento de liberação que você quer pôr essa energia para fora e continuar contribuindo para a sociedade”, diz Kalache.

Por outro lado, esse mesmo grupo, está sendo obrigado a encarar, com seus pais, uma experiência que eles não tiveram com os deles: a demência, entre outros problemas. No passado, poucos doentes tinham vida prolongada.

Atualmente, a cada quatro segundos, um novo caso de demência é detectado. O Alzheimer, que acomete cerca de 15 milhões de pessoas só no Brasil, é uma das doenças causadoras do mal. Inicialmente, afeta a memória recente e provoca problemas nas funções intelectuais, como a capacidade de trabalhar e de exercer atividades rotineiras. Nos estágios mais avançados, o paciente se torna totalmente dependente, precisando de ajuda em atividades simples diárias, como alimentar-se, vestir-se e higienizar-se.

O especialista em envelhecimento, hoje, alerta para a necessidade de desenvolver a cultura do cuidado que, no Brasil, tem gênero. É função da mulher que desde criança foi treinada para isso. “Na infância ela já cuidava da boneca, enquanto os meninos ganhavam uma bola e eram educados para não chorar e evitar demonstrações de emoção. O homem precisa participar dessa revolução e passar a cuidar mais. Num mundo envelhecido muito mais pessoas vão precisar de cuidados”, diz Kalache.

O difícil papel do cuidador

Hoje,15% da população idosa precisa de ajuda para se alimentar e tomar banho. Cuidar é uma “obrigação natural” da mulher. Há casos em que ela abandona o trabalho para poder cuidar do marido ou dos pais, seja por estar mais próxima, ter mais afinidade, não ter outros dependentes ou não ter outra alternativa.

Não é raro que a cuidadora se sinta com o passar do tempo sobrecarregada, cansada, injustiçada, revoltada e… culpada. Compreende as necessidades do idoso, mas de outro vê a própria vida passar, acaba se afastando dos amigos, das atividades que antes lhe davam prazer. Isso se reflete até nas relações com o parceiro. Filhos únicos passam por uma situação ainda mais perversa. Acabam se dividindo entre o trabalho (que lhes garante o sustento) e os cuidados do dependente, aumentando ainda mais a carga de estresse permanente. Em todos os casos, sem o devido apoio, a situação pode se transformar em fonte de conflito.

Esse não é o único fator que pesa. O cuidador nem sempre é visto ou ouvido. “Quando entra um paciente no meu consultório, entram dois, ele e quem está cuidando dele. Normalmente esse cuidador fica à sombra dos nossos cuidados, nós sequer perguntamos como eles estão”, diz o Dr. Fabio Campos Leonel, geriatra no Hospital das Clínicas de São Paulo. “Quem cuida não tem tempo para se cuidar”, resume.

No Brasil, a maioria dos cuidadores de idosos enfermos ou dependentes são outros idosos. O desgaste é tamanho que, em 63% dos casos, os cuidadores morrem até quatro anos antes de quem estão cuidando, de acordo com uma pesquisa da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos. Outro estudo descobriu que cuidadores desenvolveram problemas no sistema imunológico mesmo após três anos depois de seu papel como cuidador ter acabado.

Há uma correlação muito forte entre a saúde física e emocional de ambos”, diz o Dr. Leonel. “Quanto mais dependente for o paciente, mais sobrecarregado e estressado ficará o cuidador. Quanto menos saudável o cuidador for, mais doente ficará o paciente”.

Aos 65 anos, Sandra Cuofano Fernandes é uma avó tranquila e cheia de energia. Hoje, se dá o direito de escolher o que vai fazer do seu dia, mas ainda se recupera de um dos períodos mais difíceis de sua vida.

Dona de casa, Sandra foi quase que exclusivamente cuidadora nos últimos seis anos de vida da mãe, falecida no ano passado. Inicialmente, a própria relação com dona Celina não era boa. Os esquecimentos e a agressividade, em alguns momentos, eram creditados à personalidade e à idade. Nem eram assunto das consultas rotineiras.

O diagnóstico de Alzheimer veio mais de dois anos depois, quando o comportamento estranho da mãe acabou relatado ao médico. As explicações e orientações recebidas tiraram parte da culpa que Sandra sentia. Ela tinha dúvidas se estava agindo e cuidando certo da mãe. O apoio psicológico talvez tivesse contribuído mais. Ela e a mãe participaram de duas sessões, mas a distância e o tempo gasto acabaram por fazê-las desistir. A teoria na prática era outra. Talvez o mais difícil era não ter a expectativa de cura ou melhora e ver a mãe a cada dia mais dependente.

Obrigada a ter sua intimidade invadida, perdendo a memória e a lucidez, o controle dos movimentos, da urina e, sobretudo, não conseguir sequer mexer-se por conta própria dava à mãe mais motivos para revolta. Ela não tinha culpa e compreender isso facilitou a relação entre as duas, mas não deixava Sandra menos sobrecarregada. Viagens, simples passeios e visitas foram se tornando cada vez mais raros com o agravamento da doença e os conflitos com a irmã se acirraram. Por que só ela tinha essa responsabilidade? Até hoje não encontrou resposta.

Sandra, entretanto, é exemplo da importância e necessidade de apoio aos cuidadores. Foi graças as orientações de especialistas consultados através do plano de saúde que ela aprendeu técnicas para mover, trocar fraldas de adultos, dar banho e alimentar. Infelizmente, nem todos têm acesso a esse tipo de serviço.

Condições como as enfrentadas por Sandra são mais críticas, mas não significam que outras mereçam menos atenção. Quanto mais avançada for a idade da pessoa, mais cuidados serão necessários. De um segundo para outro, um tombo pode mudar tudo. O idoso precisa ser estimulado, ter com quem conversar e ser escutado. Isso demanda tempo. Homens e jovens, especialmente, se apoiam na tradição, no trabalho ou nos estudos como álibi para evitar dividir uma responsabilidade que é de todos.

Fatores de risco para o cuidador

O cuidador nem sempre se reconhece nessa função que, com o decorrer do tempo e sem apoio, pode ter a própria saúde afetada. Os riscos se elevam quando o cuidador é do sexo feminino, tem menos anos de educação formal, vive com a pessoa a ser cuidada, se isola socialmente, tem depressão, problemas financeiros e não tem habilidade para enfrentar dificuldades.

Um recado aos futuros idosos

A melhor idade é aquela em que você vive bem, satisfeito consigo mesmo. Pode ser aos 20, aos 40, aos 60 e se prolongar. Alexandre Kalache compara a vida a uma corrida. “Quando a gente vivia até os 60 anos, a vida era uma corrida de cem metros. Você vinha com todo o gás para chegar ao fim. Hoje a vida é uma maratona. Você precisa ter estratégias, treino e objetivos. Não há interesse nenhum de chegar ao final dessa maratona aos trapos, sem qualidade. O resto a gente, de alguma forma, compensa. Perdas são inevitáveis. Quanto mais tempo você vive, mais perdas acumulará. Mas se você mantiver a motivação, vai longe”, diz o médico.

Com a aposentadoria pode haver uma perda financeira. Pode faltar dinheiro para a viagem dos sonhos, mas sobrará tempo. Procure um trabalho voluntário, procure aprender mais e continuar motivado. Com essa longevidade, não é a velhice que se prolonga, é a vida que é mais longa. Quanto antes se preparar para enfrentar essa etapa da vida, evitando o sedentarismo e fazendo algumas economias, mais fácil será enfrentar os desafios que a vida impõe.

É preciso manter a capacidade de aprender, dar a volta por cima e continuar a ter qualidade de vida à medida que envelhece. Resiliência é a palavra de ordem para Kalache.

SINAIS DE ESTRESSE E ESTRATÉGIAS PARA COMBATÊ-LO:
Cada cuidador enfrenta a situação de uma maneira, mas entre os grupos de ajuda algumas queixas são comuns, como a sensação permanente de cansaço, excesso ou ausência de sono, irritação, ganho ou perda de peso, ansiedade, perda de interesse por coisas de que gostava e dores de cabeça, coluna e outras.
Para se manter saudável, o cuidador precisa se reconhecer como tal. Ele não deve se sentir culpado. A irritação de algumas horas é natural, mas é importante, buscar, aceitar e receber ajuda. Isso, porém não basta, é preciso adotar também algumas estratégias:
💡 tenha a noção exata do que é capaz de oferecer, procure fazer o melhor e evite buscar a perfeição;
💡 faça listas, estabeleça metas, tenha uma rotina e aprenda a dizer não. Se comprometer com jantares e almoços a visitantes só aumenta o estresse;
💡 informe-se sobre serviços oferecidos que possam facilitar sua rotina;
💡 mantenha-se conectado com familiares e amigos que possam dar apoio emocional;
💡 estabeleça metas pessoais para sua saúde: uma rotina de sono, exercícios e não deixe de fazer um check up;
💡 não tenha medo de confessar os seus sentimentos, as suas dúvidas e os seus medos.


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